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quinta-feira, 29 de maio de 2014

Uma corda sobre o abismo.

Há momentos em que a vida não vale nada. 
Outros, em que é preciosa como o Amor.
E, depois, há quem, pura e simplesmente, desafie tudo. 
Quem, correndo  um perigo, que desdenha,  goze infinitamente  cada momento, de  olhos  postos em  frente
sabendo que, a cada instante, se desviar o olhar para outras direções,  pode cair definitivamente no desfiladeiro, mas desprezando essa hipótese e fruindo até ao absoluto a loucura da sua coragem.
Como Nietzsche tão bem disse: "O homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-Homem, uma corda sobre o abismo".
De Super-Homem se fala,  no sentido espiritual,  intelectual e ético. 
Nada mais.

mts


Photo by Frank Gunn

Diego


Diego Frazão Torquatoé um rapazinho brasileiro, de 12 anos, que chora, emocionado, enquanto toca violino no funeral do seu mestre.

Desconhece-se o autor da fotografia, mas é fácil apercebermo-nos da sua maestria ao captar a verdadeira essência da dor e da alma do menino, por entre as lágrimas que não consegue conter, em contraste com o rosto inexpressivo, ou mais contido, do seu companheiro.

Não me é difícil imaginar que o mestre o tirou do perigo dos gangues e da droga, das favelas brasileiras, através da magia da música.
Mas também não sei se isso é verdade. Apenas intuo.
E, contudo, aquela imagem de sofrimento é tão aguda, que nos agride nas nossas zonas de conforto. É de uma intensidade tal, que se consegue perceber o sentimento de amor, de gratidão e do mais absoluto desamparo.

O rosto desta criança personifica para mim uma beleza, que convive socraticamente com o amor e o Bem, e que personifica o despojamento completo do Ser, num sublime toque de violino.

mts


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Velhinha menina.

Já foi jovem.
Os rapazes olhavam para ela com sorrisos malandros.
Namorou, como as raparigas do seu tempo, à janela e, escassas vezes, na rua.
Mais tarde casou e nada coincidiu com as promessas de amor eterno que ele lhe fez.
Sofreu maus-tratos físicos e psicológicos do marido, mas, naquele tempo, as mulheres não se queixavam. Sofriam em silêncio.
Teve filhos, que mal chegaram a adultos, saíram daquela casa, para escaparem ao ambiente de opressão, aos gritos, murros na mesa e à pancada que o pai dava na mãe, quando o vinho lhe toldava os sentimentos e o raciocínio.
De vez em quando, escreviam-lhe e mandavam-lhe as Boas-festas pelo Natal. Mas as cartas começaram a ser cada vez mais espaçadas e, lentamente, deixaram de escrever. Ela bem esperava, ansiosa, pelo carteiro, mas ele nada lhe trazia.
Os anos passaram. O branco de neve clareou-lhe o cabelo e as rugas do tempo sulcaram-lhe o rosto.
Quando o marido morreu, não verteu uma lágrima.
O senhorio começou a pressioná-la para pagar a renda de casa, mas ela não tinha dinheiro e já era muito velha para recomeçar a vida, que lhe fugia.
Foi posta na rua com meia dúzia de trapos, a que estavam reduzidos os seus haveres.
Curiosamente, não sofreu nem chorou.
Quando chegou à rua, sentiu-se, finalmente, livre.
Agora, a idade pesa-lhe. A cabeça atraiçoou-a e entretém-se a tecer histórias num mundo que é só seu. Já não compreende o tempo em que sobrevive. Os ossos doem-lhe, mas percorre as ruas lentamente, com os seus sacos, um velho e surrado sobretudo vestido, um lenço atado à cintura e outro amarrado em volta dos cabelos a lembrar a tímida vaidade de outros tempos.
Mantém um rosto de menina, debaixo das rugas, e um ar de triste abandono que nos enternece e emociona.
Quem a conhece, sempre a rondar os mesmos lugares, a dormir no mesmo canto da rua, entre caixas de cartão, ajuda-a com o que pode.
Ele já nem sabe agradecer. Ficou perdida nas suas memórias de infância, que ainda não se apagaram.
É uma menina velhinha…
Vem e vai com os pássaros brancos até ao fim da linha.


mts


Fotografia de Claire Martin

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O namoro

Queres ser minha namorada? – pergunta o miúdo, um pouco receoso.
- O que é isso? - pergunta, de olhos a brilhar, a menina de cabelos dourados e vestido com roda.
É gostares muito de mim, brincares comigo ao berlinde, andarmos de mãos dadas e darmos beijinhos na cara – explica ele, sabiamente.
- Está bem, mas eu não sei jogar ao berlinde e gosto mais de brincar com as minhas bonecas, responde ela, omitindo as outras características da arte de namorar.
Não faz mal, eu ensino-te, diz ele, decidido. Mas não podes andar de mão dada com outros meninos, ouviste? Só comigo - adverte ele, que bem conhece a popularidade de que a menina de cabelos dourados e vestido com roda, goza na escola.
E ainda pergunta, com o ciúme a desabrochar, - Juras que és só minha namorada e de mais nenhum menino?
- Juro, mas quero continuar a brincar com as minhas amigas e as minhas bonecas e a saltar à corda, diz ela, subitamente decidida, com ares de pessoa grande, independente.
Está bem, respondeu ele, conciliador e, sem mais delongas, decorou-lhe uma bochecha rosada com um beijinho.
A menina de cabelos dourados e vestido com roda ficou muito atrapalhada e achou mais prudente calar-se.

Levantaram-se, ambos, e foram de mãos dadas, em direção ao sol.


mts


Fotografia de Peter Fink. Lisbon, 1960's

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Aos meus filhos

A Primavera, com um ano de diferença, trouxe-me os meus dois filhos.
Muito mais tarde, dois dias antes da mãe, a 13 de Maio, chegou a minha netinha.
Por isso celebro a Primavera com toda a alegria e um entusiasmo quase infantil, embora emocionado.
Tenho descoberto, ao longo da vida, que os filhos não nos pertencem, que ganham asas depressa, mas que, de vez em quando, regressam ao meu regaço.
Com ambos tenho aprendido muito do que me faltava conhecer.
Das suas diferenças se faz a completude da minha existência.
Sem eles e, agora, sem a Adriana não saberia como viver.
Há um caminho que trilhamos em comum e que nos leva a cumes de felicidade ou a vales ensombrados de tristeza.
E, no entanto, progredimos.
Sempre.

mts



domingo, 4 de maio de 2014

Mãe

Mãe que me criaste e me educaste,
tu ouviste os sonhos que te revelei
e o desespero das horas amargas.
Por vezes enxugaste as minhas lágrimas,
outras tantas me deste força,
quando tropeçava nos escolhos da vida…
Mas eu também ouvi os teus lamentos
e as dores do teu passado.
Muitas vezes me criticaste
e eu te critiquei.
Muitas vezes te zangaste e eu me zanguei,
mas estivemos sempre presentes uma para a outra.
E tu sabes, Mãe, que haja o que houver,
eu acompanho-te, fiel,
porque tu és minha mãe e eu sou tua filha,
não por mero acaso, mas por desígnio divino.
As leis do universo nos juntaram
para aprendermos uma com a outra
e nos tornarmos melhores.

Neste nosso caminho para o fim,
na passagem para o lado de lá da Vida,
que nada nos pese, nada nos ensombre.
Que a paz inunde de luz e serenidade
os dias e as noites que nos faltam.


mts


Rafael Sanzio. "Madona Granduca"

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O Portal.

Havia um portal.
Depois dele havia uma porta aberta.
Dentro apenas se descobria umas escadas.
Cada vez que passava por ali, do lado de fora desse portal, interrogava-se sobre quem vivia lá, mas nunca avistava ninguém.
Um dia quando de novo por ali passou, ouviu um burburinho, o restolhar de saias e véus, alguém que descia as escadas, então iluminadas. Uma noiva de branco, com um comprido véu, atravessou a porta e o portal, quase correndo. Apenas um homem de meia-idade, que pela forma carinhosa como a tratava, devia ser o pai, a seguia, com esforço. Via-se que estava doente. Ia entregar a filha ao noivo, como era costume, na igreja que ficava perto.
Afinal, pensou, depois de ter parado para ver cena, havia vida naquela casa. Uma, em breve se soltaria…

Quando, alguns anos mais tarde, por ali passou, as cores tinham mudado. Tudo era alaranjado, definido por um azul luminoso.
Ouviu uma chilreada de crianças que, logo, desceram as escadas a correr e atravessaram o portal.


mts


Fotografia de Pete Turner.