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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

"Além-Deus"

Fernando Pessoa era um místico e um verdadeiro ocultista, que sabia distinguir o oculto por baixo das aparências, não se contentando com o aqui e o agora. Toda a sua obra é um hino ao outro lado, ao "Além-Deus", expressão que significa além da nossa humana e intelectual conceção de Deus. A própria vida é uma revelação e a poesia uma iniciação. A criação dos heterónimos foi um verdadeiro ato de alquimia em que se fragmentava para, aprofundando as várias camadas do ser, para encontrar a sua unidade, sabendo previamente e por intuição direta que iria encontrar em si mesmo a origem de tudo.
A poesia transcendental de Fernando Pessoa mergulha nas raízes do inconsciente coletivo. Recordo aqui as palavras de Jung (em “Poesia e Psicologia”): “A experiência poética, autêntica, aflora de regiões profundas da alma, salutares e benéficas, preexistentes à segregação das consciências individuais, e que, a partir desse regaço coletivo, seguiram os seus passos dolorosos. Brota dessas regiões onde todos os seres vibram ainda, em uníssono, e onde consequentemente a sensibilidade e a ação do indivíduo valem para toda a humanidade".
Segundo Fernando Pessoa, o “mistério”, que é tudo, não pode ser compreendido sem emoção, porque a inteligência não o capta. A verdadeira essência das coisas, da vida, de tudo, enfim, acha-se no fim do caminho, quando se intui que ela está, afinal, onde sempre esteve: dentro de nós.
Os textos de “O Caminho da Serpente”, mostram bem a dificuldade do “caminho”. Diz Fernando Pessoa, que “Todo o homem que tenha de talhar o caminho para o alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes”. Mais adiante acrescenta ”cercal-o-ão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos vales, e dos lares nas faldas. E o triunfo consiste na força para, sabendo sentir essas atrações, intensamente, (pois não sabel-as sentir é não ter alma para a subida), as submeter à emoção superior” (In Esp.54A-6, citado por Yvette Centeno na sua obra “Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética”, Editorial Presença, p.12).
“O Caminho da Serpente” é o caminho da sabedoria. 
Para alguns, a serpente é Fernando Pessoa, para outros é Portugal. 
É um caminho de agruras, de permanente descoberta interior, de descida às profundezas, de levantamento de camada sobre camada, retirando as máscaras, para depois ascender aos altos “píncaros”, “onde o ar está rarefeito”, como Nietzsche também disse. Só aí o homem estará, embora irremediavelmente só, finalmente liberto. 

10 de outubro de 2014
mts
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“A serpente é o entendimento de todas as coisas e a compreensão intelectual da vacuidade d’ellas. Seguindo um caminho que não é o de nenhuma ordem nem destino, ela ergue-se à Altura que é a sua origem e evita os lugares por onde os homens passam.” […]
“É preciso quando se é serpente passar em Satan para chegar a Deus.” […] “E, quando sem ter caminho chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora.”

Fernando Pessoa. "O Caminho da Serpente"

Imagem: Lima de Freitas, retrata Fernando Pessoa e o "Caminho da Serpente", no painel de azulejos da gare do Rossio

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Lua redonda

Noites em que a lua atravessa a noite,
com um clarão que ilumina os pesadelos
e os transforma em sonhos.
Noites de lua cheia como as marés
que sobem nas praias e descobrem
os amantes em delírios de amor.
Noites que enchem as sombras de luz
e despertam emoções naqueles que
não se importam de sentir desvairadamente.


Teresa Sampaio


Nasci para gostar de gostar

nasci para antever a luz
por detrás das nuvens mais escuras
para sondar o insondável
e perscrutar o que não é visível ao olhar
nasci para aprender a aprender
e descobrir que tudo está por descobrir
nasci para lutar em todos os momentos
pela liberdade e saboreá-la
como o insaciável desejo de um fruto proibido
nasci para ser livre como um potro selvagem
que cavalga um mundo sem fronteiras
e sacode a mão que o quer subjugar
nasci para ser criança mãe e avó e novamente

criança na cristalina alegria dos risos gaiatos
no incansável jogo lúdico
do que se faz e desfaz e se volta a fazer
na fulgurante cumplicidade do amor

nos rarefeitos cumes do dever solitário
e no espanto criador
de quem se perde e se acha
para  além de todos os limites

nasci para caminhar à beira do abismo
aceitando o desafio de o transpor
e de um salto conhecer o lado de lá
da  vida num eterno e circular retorno

nasci para gostar de gostar

Teresa Sampaio