Publicação em destaque

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Era um tempo...

Era um tempo de muita luz e poucas sombras. Ele chegava devagar. Ela acolhia-o com o sol no olhar. As mãos davam-se em concha e transformavam o dia.
  
A cidade não lhes bastava. Os muros asfixiavam a sua esperança. Um dia ascenderam, nos braços um do outro, sobre as casas e encontraram-se  a sonhar no azul da noite.

Os sentidos conjugavam-se na liquidez do amor. Tanto que o ar cheirava a cravos vermelhos e as palavras soavam a música.

Os dias sucederam às noites. As primaveras anteciparam os invernos. Pássaros brancos da cor do luar cruzaram o céu. Barcos ancoraram na raiz dos dias.
  
(Tu voltavas sempre que um poema ou uma música te acordavam na casa do meu ser.)

 Maria Teresa Sampaio

La Valse. Camille Claudel (1864-1943. França). Musée Rodin. Paris.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Infinitude

Não sei o que é o fim
e muito menos o princípio
sei apenas que tudo continua
se modifica se transforma
sei que o amor é imenso
sem idade nem tempo próprio
sei que dar os filhos ao mundo
é um milagre embrulhado
em mistério que dói
nos ilumina surpreende
e inunda de uma felicidade
que a nada mais se compara
sei que assim como cheguei
um dia hei de partir
sei que tudo isto é tão natural
como dizer amo-te ou
adeus até mais ver
sei que um ano não acaba
nem outro começa
apenas continua
na infinitude do tempo



Maria Teresa Sampaio


quarta-feira, 27 de julho de 2016

Assim

Num deserto sem sombras
num jardim sem flores
ou num tempo sem voz
tu sabes, é assim que existo
definitivamente para ti.

Maria Teresa Sampaio

Christian Schloe

terça-feira, 26 de julho de 2016

O Fim de Semana – Bernhard Schlink

Durante um fim de semana, um grupo de velhos amigos, já bem inseridos na sociedade, reúne-se para celebrar a libertação de Jörg, companheiro de lutas estudantis, condenado por terrorismo  e quatro homicídios, que cumpriu vinte e quatro anos de pena. Escrito em 2008, este romance não podia ser mais atual.

Quase todos eles tinham sido esquerdistas. Emprego aqui este termo, no sentido que Lenine lhe atribuiu em “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, no qual refere precisamente alguns "comunistas de esquerda" da Alemanha, acusando-os de desvio ideológico. Esta polémica reacendeu-se nos anos setenta e teve particular incidência na Alemanha, onde  em 1975 começaram a ser julgados os líderes da RAF (Fração do Exército Vermelho).

“-Os outros tipos da RAF desistiram humilhantemente e choraram e lamentaram o que fizeram e pediram desculpa, tu não. Não fazes ideia da autoridade que tens”, diz Marko, um jovem militante da extrema-esquerda, que se juntou ao grupo com o intuito de chamar Jörg de novo para a luta. -“Mas nós precisamos de ti. Não sabemos como combater o sistema”.

Bernhard Schlink, que foi juiz do Tribunal Constitucional e Professor universitário de Direito Político e de Filosofia do Direito e, portanto, se move com à-vontade nestas áreas, aproveita para aludir ao braço armado do Islão radical e à extrema direita, cujas ações têm, na prática, idênticos efeitos.

“[…] juntamente com os nossos camaradas muçulmanos, poderíamos fazer algo importante. Eles com o seu poder e nós com aquilo que sabemos deste país, juntos, poderíamos atacar no sítio que lhes dói mesmo. Mas depois aparecem aqueles que dizem que não querem juntar-se a eles; nesse caso poderíamos juntar-nos com a Direita, e há quem o sugira, e além disso há as velhas discussões que tu já ultrapassaste, se se deve empregar violência contra pessoas e contra coisas ou se não se deve empregar violência nenhuma, nós precisamos de alguém com autoridade.”

Jörg, o irmão de Christiane , tinha acabado de sair da prisão horas antes, e mal tivera tempo de saborear a liberdade, quando um dos seus antigos companheiros, Ulrich, que era de todos o que mais se tinha  “aburguesado”, o metralhava com perguntas sobre a sua antiga forma de vida, com uma agressividade quase bélica,  que a todos deixava incomodados.
Karin, bispa de uma igreja evangélica, tentava acalmar os ânimos e pedia que deixassem o antigo “combatente” em paz, mas Ulrich não descansava, apenas antecipando o que se iria passar surpreendentemente, depois, com um jovem educado, “historiador de arte”, de quem todos se tinham esquecido no calor da discussão.
Ulrich  continuava a fazer  perguntas incómodas:

“-Deixá-lo em paz? O que ele teve de sobra nos últimos anos foi paz. Ele tem entre cinquenta e cinco e sessenta anos, tal como todas nós, e a vida dele foi…Como é que vocês a querem descrever? Assaltar bancos e matar gente; terrorismo, revolução e prisão, foi essa vida que ele escolheu. E eu não posso perguntar-lhe como é que foi? (…) Que ele tenha matado quatro pessoas… Se isso não é motivo suficiente  para matar uma amizade, também não o é para termos de calçar luvas quando lhe quisermos tocar.”

A luta armada “contra a violência do Estado” “opressor”, os “danos colaterais” , a sociedade burguesa e o “projeto de esquerda” foram tópicos abordados durante as refeições, até chegar a vez das memórias dos sonhos juvenis  e das peripécias inofensivas das lutas estudantis.  Todos repetiam “ainda se lembram?” e brindavam à amizade que os unia ainda. Quando se olhavam ainda viam os rostos de antigamente e sentiam carinho pelos traços atuais que descobriam. Mas, nem todos pensavam assim, entre eles o jovem estudante de arte, de cuja presença nem se tinham apercebido, no entusiasmo das memórias ainda vivas, soltou uma gargalhada sarcástica e lançou uma autêntica “bomba” ao comparar o grupo de amigos com os velhos nazis pertencentes às SS e interpelando diretamente Jörg, tratando por papá com todo desprezo de que era capaz. Ninguém reparara nas parecenças entre ambos, nem o próprio pai, que ficara petrificado. Chamava-se Ferdinad Bartholomäus, em honra dos anarquista italianos, Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, condenados à pena de morte e executados nos Estados Unidos. Tinha sido educado pelos avós depois de a mãe se ter suicidado, quando ele tinha seis anos. Olhava o pai sem temor, com ódio  e lançava-lhe em cara o facto de conhecer os filhos dos homens que ele tinha assassinado:

-“Tu devias saber o que significa ser filho de um assassino e tu tornaste-te um pai assassino, o meu pai assassino”.

De súbito, a conversa amigável tinha mudado completamente de rumo. Todos sentiam o horror da situação, mas não conseguiam fazer nada para a consertar. O pai - e a sua ideologia política - estava, como num tribunal, a ser julgado sumariamente pelo filho. Implacavelmente. Não podia fugir ao seu passado, do qual não se arrependia nem lamentava e até assumia com orgulho:

-“Tu não és capaz de sentir dor como os nazis não o eram. Não és nem um bocadinho melhor do que eles, nem quando mataste pessoas que não te tinham feito mal nenhum, nem quando, depois de o fazeres, não conseguiste compreender aquilo que tinhas feito.”

Bernhard Schlink não se esquece de que a geração de Jörg é a mesma que se indignava contra a geração dos pais, a da II Guerra Mundial, por ter pactuado com os nazis, ativa ou passivamente. Fala dela no seu romance anterior,  “O Leitor”.  Neste , encarrega o jovem Ferdinand de o recordar ao pai:

-“Vocês irritavam-se com a geração dos vossos pais, a geração dos assassinos, mas vocês tornaram-se precisamente iguais a eles. “

O pai não consegue argumentar com o filho, estavam ambos em patamares muito diferentes, praticamente incomunicáveis, e apenas é capaz de dizer que já pagou por tudo, mas melhor teria sido que o não dissesse. O filho lembra-lhe:

-“Vinte e quatro anos por quatro assassinatos? Uma vida vale apenas seis anos? Tu não pagaste por aquilo que fizeste, tu perdoaste-te por isso. (…) “Mas são apenas os outros que podem perdoar. E esses não te perdoam.”

E, a terminar acusa-o de também ter morto, indiretamente, a mãe, ao abandoná-la. Jörg viu no filho a mesma inflexibilidade que ele tinha naquela idade e pensou “na maneira como a desgraça se reproduz”. O choque geracional era evidente, mas Jörg não o via, sentia-se injustiçado. Estava ainda imbuído dos conceitos esquerdistas do seu tempo que, ali já tinham sido ultrapassados pelos seus amigos e que apenas o jovem Marko partilhava. Nem reparava que se colocava na mesma posição do filho quando se opunha aos pais, embora divergisse nos motivos e na prática. Invocava a situação que tinha divido a Alemanha no pós-guerra (II Guerra Mundial) na esperança de ser compreendido, de lançar uma ponte ao filho:

-“Os nossos pais acomodaram-se e tinham evitado reagir, nós não podíamos fazer a mesma coisa. Era simplesmente impossível continuar a ver as crianças a arder por causa do napalm no Vietname, a morrer de fome em África, a serem espancadas nas instituições”.

Tinham de lutar, dizia, contra um Estado que reprimia quem pensava de maneira diferente, que isolava espancava, torturava, os seus camaradas e ele  também.

-“A resistência contra um sistema violento não é possível sem violência”, rematou.

Claro que entendia que a sua luta não podia ter “conduzido à vitória”, que tinha cometido erros, mas isso não implicava baixar os braços,  pactuar com o poder ou vender-se. Devia ter-se empenhado noutra luta, que não sabia bem qual era.
Escutavam-no com embaraço e perplexidade, pensando que ele continuava como há trinta anos atrás, com o mesmo discurso radical, aprisionado nos seus conceitos. Mas, o filho não lhe deu tréguas.  A questão das vítimas inocentes não podia deixar de ser debatida. Jörg defendia que seriam justificadas se, através da revolução, se tivesse criado um mundo melhor e mais justo. O filho olhava, horrorizado para o pai como quem olha para um monstro, com o qual é impossível existir pontos comuns. Incrédulo com a incompreensão do filho, Jörg exclamou:

-“Mas tu não podes achar que o sacrifício de vítimas inocentes nunca se justifica! Se se tivesse conseguido matar Hitler, de tal maneira que também houvesse inocentes…

A resposta não se fez esperar:

- “Essa é uma exceção. Vocês transformaram a exceção em regra.”

Estava praticamente tudo dito entre eles. Faltavam duas revelações finais.  Amargurado, Jörg confessa ao grupo e à irmã que lhe resta pouco tempo de vida porque tem um cancro, descoberto na prisão, já tarde demais.

“Eu devia ter morrido num tiroteio qualquer há vinte e cinco anos “.

Foi então que a irmã, que sempre o tinha protegido e ajudado, revelou que o tinha denunciado anonimamente à polícia, “para que isso não acontecesse” , porque já não aguentava o medo que tinha por ele e queria e não queria que morresse assim.
O fim de semana estava no fim. Entre o grupo de amigos tinham-se esboçado duas relações amorosas, mas Bernhard Schlink pouca atenção dá a estes casos. As personagens são descritas pelos seus atos, não pelos sentimentos ou emoções. A força deste romance está, mais uma vez, no embate de gerações, mas principalmente na denúncia dos ideais revolucionários esquerdistas na Alemanha,  que, perigosamente,  estiveram na génese do terrorismo e ainda na demonstração de como a intolerância não desapareceu com a morte de Hitler, quase parecendo, aqui, entre pai e filho um elo hereditário, que facilmente se transpõe para a sociedade e a política.

Julho de 2016
Maria Teresa Sampaio







segunda-feira, 25 de julho de 2016

Esperança

A esperança existe, sim.
Desponta de repente como
uma flor no deserto.
Vem de outro mundo
tão diferente deste,
um mundo ideal
de formas sonhadas,
mas também de profundas
e inesperadas emoções.


Subitamente tudo muda
com o impulso do vento
acariciando as copas das árvores.
Eu já não sou apenas eu
e tu já não és apenas tu.
  
Tu e eu agora somos Nós.

Aceitamos tudo o que foi
o que mudou, o que é e o que será.
Somos uma força única de amor
que vem do início das eras.
e mesmo que tudo se desenvolva
como se for num tempo sem tempo
nada mais podeis fazer,
somos um homem e uma mulher
que se resgataram do passado
e se amam sem explicações
na aceitação do presente.
Para além dos limites.
Para além das fronteiras.


Maria Teresa Sampaio
Romeu e Julieta. Frank Dicksee. 1884

domingo, 24 de julho de 2016

No silêncio

No silêncio do teu nome
na noturna ausência da tua pele
inscrevem-se notas brancas
lancinantes como punhais
que abrem sulcos magoados
no rumor vago dos meus dias.


Maria Teresa Sampaio

Imagem: Fabiola Mosquera.


O sorriso

                                  À Adriana

Esqueço  as dores do corpo,
o desassossego da alma,
sempre que me detenho
na inocente beleza do teu rosto,
no teu olhar gaiato e festivo,
mas, mais do que tudo,
na luminosa  e cristalina
alegria do teu sorriso
onde a felicidade radiante habita .
Só ele enche a casa, a alma, os dias
e tem o poder encantatório
de tocar por magia os corações,                               
como se para sempre o júbilo povoasse
a infinitude  do tempo e a efémera  vida.


23 de julho de 2016

Maria Teresa Sampaio


Arthur John Elsley


sábado, 23 de julho de 2016

E agora?

Deixei as minhas mãos
presas nos ramos dos teus cabelos.
E agora, que farei com elas?
Deixei o meu olhar afundar-se
na lagoa dos teus olhos.
E agora, como hei de ver?
Deixei os meus lábios perdidos
nas encruzilhadas do teu corpo.
E agora, como hei de descobrir
o sabor imaginário dos beijos
ou a paisagem solar do Amor?

Teresa Sampaio
Imagem: Carsten Meyerdierks





sexta-feira, 22 de julho de 2016

“As velas ardem até ao fim” – Sándor Márai.

Não cometo nenhum exagero se disser que este é um dos mais belos romances da literatura universal. Encoberto durante muitos anos pela “Cortina de Ferro”, proibido no seu país, a Hungria, só chegaria às mãos dos leitores em todo o mundo, depois da queda do Muro de Berlim. Mas a vida, por vezes, tem momentos sombrios, e o autor deste extraordinário romance sobre a amizade não chegou a presenciar aqueles tempos libertadores. Suicidou-se poucos meses antes, na Califórnia (Estados Unidos) para onde tinha emigrado.

Escrever sobre esta obra é para mim uma necessidade, mas também uma espécie de tormento, porque sei que não conseguirei fazer-lhe justiça. O patamar em que o autor se encontra é infinitamente superior, para já, do ponto de vista literário, e, depois, em sabedoria, capacidade de penetração psicológica na mente própria e do outro e experiência de vida. Com tantos limites, como me atrevo? É um dever de leitora atenta? Talvez. Quando terminei a sua leitura, interrompida múltiplas vezes para meditar sobre as interpelações que Sándor Márai nos faz, fiquei cativa de um fascínio que me cativou e me fez voltar a ele. Li, logo de seguida, outro livro e, dois dias depois, aí estava eu de novo, completamente enfeitiçada por aquele general, que comanda as outras personagens e a nós também. Não, certamente, pelas armas, mas pela magistral lição de vida que dá, pela extrema sensibilidade e inteligência. E ainda pela dialética que imprime no diálogo – ou será monólogo? – com o seu melhor amigo, para apurar a verdade.
Henrik e Konrád são dois amigos, quase como irmãos, embora muito diferentes, que vão juntos para o colégio militar e vivem uma amizade, tendo como pano de fundo a desagregação do império Austro-Húngaro, a I Guerra Mundial e o início da segunda. Logo nas primeiras páginas, o autor alerta-nos para a delicadeza dessa relação, muito embora diga: “Os dois rapazes sentiam que viviam numa condição maravilhosa, sem nome, num certo estado de graça”. Viveram juntos, no colégio, nas férias, no Natal, uma parte importante das suas vidas. Foram vinte e dois anos abruptamente interrompidos, sem qualquer explicação.
   “Henrik aprendia com facilidade, Konrád com alguma dificuldade”.
   “Henrik movia-se também com naturalidade na sociedade, despreocupadamente e com superioridade, como se o mundo já não o pudesse apanhar de surpresa; Konrád era rígido e cumpridor de regras”. O primeiro tinha estatuto, bens e poder, o segundo era pobre. “Konrád tinha um refúgio, para onde o amigo não o podia seguir: a música”.
Como o pai do general previa, o amigo do seu filho nunca seria um verdadeiro soldado. Porque era diferente.

   “Nada é tão raro ente jovens como uma afeição desinteressada que não pretende do outro nem ajuda nem sacrifício”.
  “E porque gostavam um do outro, ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza”.

Entre ambos interpôs-se Krisztina, mulher de Henrik. A rutura, a morte e a solidão tinham chegado.

Quando pressentem o fim das suas vidas, quarenta e um anos e quarenta e três dias depois da partida, ou fuga, de Konrád, encontram-se em casa do velho general, num jantar em que tudo é disposto da mesma forma que na última noite em que estiveram juntos. As velas acesas eram também azuis. Nada destoava naquele ambiente solene e festivo, a não ser eles mesmos, já com setenta e três anos de idade e um segredo para ser revelado. O general desempenha então o papel semelhante ao de um psicanalista, iluminando com inteligência e perspicácia intelectual os recantos mais obscuros da mente. A reflexão que conduz, pedagogicamente, lembra-me a Maiêutica de Sócrates, partindo do princípio “Só sei que nada sei”, ao colocar Konrád, perante questões para as quais procura as respostas, que afinal ambos conhecem ou intuem.
Quando a velha ama, Nini, pergunta ao general o que pretende daquele homem, ele responde: a verdade. 
   “Conheces bem a verdade.
 - “Não conheço”…. “É mesmo a verdade que não conheço”
 - “Mas conheces a realidade – disse a ama”(…)
A subtil distinção entre verdade e realidade é logo por ele esclarecida.
  - “A realidade é apenas um pormenor.”
A revelação que, então, a ama lhe faz tem o poder de acalmar o seu coração e será determinante na conversa com o amigo. As diferenças entre ambos não se atenuaram com o tempo. Se para Konrád o mundo a que ambos tinham prestado juramento já não existia e não tinha nada a ver com o novo, para o general, esse mundo vivia, mesmo que na realidade tivesse deixado de existir, porque tinha jurado lealdade. A amizade para ele significava ainda mais do que a honra, era a “relação mais forte na vida”. Falando, como se fosse no passado, porque entre ambos tinha existido uma traição, cujo motivo ele queria apurar, diz:
“A amizade, pensava eu – e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campestre -, é a relação humana mais nobre que pode haver entre os seres vivos humanos”.
Conhecia os factos, tinha pressentido, mais do que presenciado, o que se passara atrás de si naquele dia, na caça, e na casa de Konrád, que era frequentada por Krisztina em segredo e cuja existência ignorava. O importante para o general era a razão que estava na origem das ações, o motivo, porque: “A intenção é tudo.”

Sándor Márai desenvolve uma reflexão ética sobre os sentimentos, a culpa, a amizade e a paixão, de uma forma luminosa, com uma linguagem que se deixa tocar pela poesia, sem deixar de seguir um processo de desvendamento lógico da verdade. É por isso que a mim me parece ver em todo este romance uma extraordinária abordagem filosófica que nos coloca perante as questões fundamentais a que todos acabamos por responder com a nossa vida.
À medida que vai falando, sempre baixo e com cortesia, confrontando Konrád com os factos, e a sua interpretação, que ele não confirma mas também não nega, o general vai esclarecendo as suas próprias dúvidas.

“Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formámos e domesticámos  em vão durante anos, às vezes durante muito tempo…”
A realidade, simplesmente, era que Konrád o tinha odiado durante vinte e dois anos. Odiava-o porque o Henrik tinha qualquer coisa que a ele faltava e o desejo de ser diferente daquilo que somos “é a maior tragédia com que o destino pode castigar o homem.”
“Temos de suportar o nosso caráter, o nosso temperamento”. “Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos não nos amem ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa”.

No final do jantar e da noite tudo começa a ficar claro. A dor insuportável da traição parece ter-se esbatido. O “fogo purificador do tempo extraiu das recordações toda a ira”. Tudo tinha sido relativizado. Tinha havido traição do amigo e da mulher? Seria possível que tivessem congeminado ambos a sua morte? O general tinha vivido na mais amarga solidão e, contudo, tinha sentido até pena dos dois. Eles podiam comprazer-se na perfídia mas não podiam evitá-lo, porque os três estavam “tão unidos como os cristais, segundo uma lei geométrica”. Olha o passado cheio de piedade. E, contudo, quando faz a pergunta que, durante os seus derradeiros quarenta e três anos de vida o atormentara, não dá ao seu convidado a hipótese de responder, corta-lhe a palavra e continua a falar. Retira-lhe o possível alívio que sentiria com a confissão. E, também, que importava, agora, isso? No seu íntimo conhecia as respostas.

O diário de Krisztina, onde a resposta possível às dúvidas dos dois homens se poderia encontrar, jazia agora nas cinzas da lareira. Nem um nem outro descobririam os motivos dela. Konrád, Krisztina e ele próprio tinham sido movidos pela paixão, “que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo e depois arde para sempre até à morte”. O general faz então uma última pergunta, que contém si várias outras para as quais afirma não conhecer a resposta, apesar de ter vivido tudo e visto tudo: Será verdade que “se nós vivermos essa paixão talvez não tenhamos vivido em vão?’
- Para que perguntas? – diz-lhe Konrád. “Sabes que é assim”

Tinha chegado a hora para os dois. Apesar de tudo e da própria verdade, continuavam amigos. Tinham esperado quarenta e três anos e três dias e nenhum tinha faltado ao encontro final. Agora, podiam receber a morte, com a solidão por companhia, um em Londres, o outro no seu castelo de caça no interior da floresta húngara. Já não deviam nada um ao outro nem à vida.


A despedida é feita em silêncio, com um aperto de mão e uma reverência profunda. Olham-se demoradamente. São mais do que pares, amigos.

Na sala de jantar, as velas tinham ardido até ao fim.


22 de julho de 2016


Maria Teresa Sampaio.






quinta-feira, 21 de julho de 2016

Espera


No litoral do teu corpo
eu busco o verão que me sufoque,
na tua língua o sabor acre e branco
da cal queimando-me por dentro.
Há noites em que te procuro ansiosa
nas dunas agrestes da cama deserta.
Há dias em que persigo a tua imagem
como um pássaro tresloucado
nos poentes sem música nem presença.
É preciso partir.
É preciso deixar-te.
Não quero.
Não posso.
Vou esquecer os limites.
Vou ficar aqui sozinha casada com a tua ausência,
à espera que chegues com o rumor breve da tarde.


Teresa Sampaio

Alfred Sisley. França (1841-1919) - Young Lady in a Boat. 1870

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Que o mal não vos contamine.

Que o mal não vos contamine.
e a esperança não vos falte.
Que nos vossos olhos as lágrimas
não sequem, porque
podem ser lampejos de alegria.
Que o sol ou a lua sejam
vossos eternos companheiros.
Que quem nada pode
tenha o porto seguro
das vossas mãos solidárias.
Que o vosso coração
seja uma fonte de luz
onde a verdade e o sonho
nunca se apaguem.

mts
  

    Ergy Landau (Landau Erzsi - 1896-1967). Reading children. 1964


terça-feira, 19 de julho de 2016

Reencontro

Nem só de presente e de promessas de futuro se tece a vida.
Também se molda no passado, em cumplicidades antigas, brincadeiras e jogos de palavras, trabalhos conjuntos,objetivos partilhados, admiração por um líder  e solidariedade com os companheiros e um grupo.
Podem passar muitos anos, a idade e a falta de saúde marcarem o corpo, que o gosto do reencontro é verdadeiro e sentido com alegria genuína, sem cerimónia ou esforço.
Velhos companheiros de estrada não se esquecem. De cada vez que se vêem, seja qual for o intervalo de tempo volvido, as boas memórias reavivam-se e as menos boas, se existem, apagam-se. Olham-se e, no abraço que trocam, sentem que há uma ponte que edificaram entre eles, do passado para o presente.
Assim foi hoje.
Assim voltará a ser de novo, quando algum de nós chamar.

18 de julho de 2016
Maria Teresa Sampaio

Imagem: autor não identificado

sábado, 16 de julho de 2016

Alegria, imensa alegria. [Sukot]

Povoa-nos, alegria. Habita em nós como um barco ilumina o oceano,
como um cavalo na intensidade da planície deserta
levanta os seus olhos até ás Hastes do plátano incandescente.
Constrói em nós a arquitetura das cidades do sul, o labirinto,

o oculto, a fome, a sede, a rapidez do nome, o seu despojamento
eterno, a água dos litorais, o Outono, a passagem das aves.
Povoa-nos, alegria imensa de alegria sem adorno, apenas
alegria sem deuses, nem a passagem, o sacrifício, as leis, os rios

do exílio, o êxodo, a sombra das cabanas, o sangue, a terra, o rosto
frio, os astros perdidos, os lábios secos, o coração do deserto.
Povoa-nos como a uma pátria de exilados, como a um corpo sem vestes

nem fragmentos, colheitas, transpiração, ardor, uníssono.
Habita em nós, alegria da vastidão, começa em nós onde o tempo
Sobrevive. Povoa-nos, alegria, envolve-nos sofregamente, veloz.

~~

Francisco José Viegas

In Metade da Vida, Quasi, Abril, 2002.
  
 Pablo Picasso.  Mulheres correndo na praia. 1922





O Leitor - Bernhard Schlink


A reflexão que Bernhard Schlink desencadeia em "O Leitor" é, para mim, o aspeto mais valioso deste romance, embora tudo seja narrado com o distanciamento de um jurista. Aliás ele próprio adverte, num comentário, em entrevista à editora Record, sobre a adaptação cinematográfica que foi realizada por Stephen Daldry:

 “Deixe-me enfatizar mais uma vez: “O leitor” não é um livro sobre nacional-socialismo nem sobre o Holocausto. É um livro sobre a relação entre a geração do pós-guerra e a geração da guerra, sobre a implicação da geração pós-guerra na culpa da geração da guerra, e sobre a implicação na culpa em geral. O escritor americano Joyce Hackett achou uma resposta inteligente para a pergunta sobre por que os filmes americanos estiveram tão intensamente preocupados com o Terceiro Reich e o Holocausto em tempos recentes: ela argumenta que depois dos anos moralmente ambíguos de Bush, há uma grande demanda por problemas morais com respostas definitivas, por imagens claras e fortes do bem e o mal. Visto dessa forma, também, “O leitor”, que lida com problemas morais, tensões e conflitos, não se encaixa nessa faixa de filmes americanos. “


 Não, de facto, Schlink não opta por imagens fortes. Michael, o protagonista, autocritica-se e a certa altura considera “repulsivo” o entusiasmo com que ele e os seus colega do seminário do curso de Direito, sobre criminosos de guerra, descobriam “os horrores do passado” e o queriam divulgar, envolvendo-se num processo de revisão do mesmo e de esclarecimento, que “pretendia ser a condenação” da geração dos pais “à vergonha eterna”, ou, pelo menos, a geração que se serviu dos guardas e dos esbirros, ou que não os impediu, ou que pelo menos não os marginalizou como deveria ter feito depois de 1945.
Com uma atitude quase sempre filosófica e interrogativa perante a realidade, o protagonista afirma: “Não devemos aspirar a compreender o que é incompreensível, nem temos o direito de comparar o que é incomparável, nem de fazer perguntas, porque aquele que pergunta, ainda que não ponha em dúvida o horror, torna-o objeto de comunicação em vez de o assumir como algo perante o qual só se pode emudecer de espanto, de vergonha e de culpa”. Penso, contudo, que a dimensão do horror e dos atos criminosos perpetrados por seres humanos sobre outros e o consequente número de mortos, nunca antes registado na Europa dita civilizada, implica que o seu conhecimento seja divulgado e explicada a sua origem, para que nunca mais seja sequer tentado. O pavor e o espanto não nos devem emudecer, nem manietar o pensamento e, muito menos, retrair ou paralisar.
Pode acontecer que a culpa da geração dos filhos daqueles que viveram a guerra e o tempo imediatamente a seguir a ela se torne redentora, na medida em que dela germinem pensamentos e comportamentos verdadeiramente respeitadores da dignidade humana e da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948.

O perigo reside, precisamente, em nos deixarmos imobilizar pelo espanto, a vergonha e a culpa. Acontece então o que Bernhard Schlink designou por “embotamento geral”, que, no romance, afetava criminosos e vítimas, juízes e jurados. Todos, sem exceção.

O fenómeno do “embotamento”, que provoca a indiferença e a apatia perante a descrição dos crimes nazis executados nos campos de concentração é descrito pelo autor como a única forma possível de se regressar à vida normal. Embora não mencionada, a noção de banalização do mal, de que falou Hannah Arendt, está aqui presente, quando Shhlink refere que os carrascos ficam completamente desprovidos de escrúpulos, “num embotamento semelhante ao dos anestesiados ou bêbados.”
O mais complexo e perigoso é o facto de quase nos parecer que não é apenas o protagonista do romance (Historiador de Direito), mas também o escritor (Juiz do Tribunal Constitucional e Professor de Direito Público), ambos com carreiras em Direito, que são invadidos por uma névoa, um amolecimento que condiciona os seus juízos.

A própria relação entre Michael e Hanna, quando se reencontram, parece contaminada pelo “embotamento”. O amor que o Miúdo sentira por aquela mulher muito mais velha, fria e distante, que o seduzira no começo da sua adolescência, e por quem ele se apaixonara, não resistira à culpa e ao “embotamento”. Restou, da parte dele a lealdade e a vontade de compreender, e condenar o que ela tinha feito. Mas não conseguiu assumir e resolver essa dicotomia. Um “grande vazio” habitava-o, como se dentro dele não houvesse vida. A própria narrativa é isenta de paixão, reduzida à sua expressão mais simples. A atmosfera é cinzenta e fria e tudo contado ao ritmo de um Historiador de Direito, que estudou as leis e os factos para os expor na primeira pessoa, sem, contudo, se envolver.
O mérito deste romance, a meu ver, reside nas questões profundas e perturbadoras com que de Bernhard Schlink nos desassossega e para as quais nem sempre encontra resposta como se também ele estivesse imbuído do fenómeno de “embotamento”.

9 de julho de 2016
Maria Teresa Sampaio